O professor doutor Fernando Ramos foi o primeiro neuropediatra em São Luís. Ano 1977. Escolheu atender crianças com necessidades especiais quando na capital maranhense não havia tomógrafo ou ressonância magnética. Foi buscar conhecimento fora do Estado, pois sabia desde o início o caminho a seguir. Enfrentou problemas sérios nos seus pacientes infantis, como os paralisados cerebrais, mas afirma que sempre enxergou essas doenças como revertidas, mesmo nos casos com potencial de limitação, como os decorrentes de síndrome de down. “Não é o fim do caminho. E para os pais, tem que ser o início do caminho. Eu sempre me preocupei em ajudar os pais a lidarem com as limitações dos filhos, pois a participação deles é muito importante para a qualidade de vida da criança”, diz ele, defendendo que criança e adolescente precisam de espaços para desenvolverem seus potenciais.

E é por acreditar no estímulo ao potencial do ser humano que Fernando Ramos já está aposentado mas continua trabalhando. Toda semana ele viaja ao interior do Maranhão para atender crianças com limitações. A outra parte de seu tempo é dedicada à coordenação voluntária do projeto social da Fundação Sousândrade, em São Luís, onde implantou cursos gratuitos para crianças e adolescentes em diversas áreas. Na área cultural, ele mantém o projeto de Teatro e Dança para adolescentes que criou no final dos anos 90, o Colun Vox. Ao falar do projeto, seu rosto sorri sem que perceba. “Sou extremamente feliz trabalhando com esses jovens”, diz.

O Amo Meu Trabalho foi conhecer mais deste professor-médico-produtor cultural-cidadão que afirma que faria tudo da mesma forma se pudesse retroceder os 43 anos de formação em Medicina pela Universidade Federal do Maranhão (UFMA), de onde foi professor assim que formou-se e reitor de 2003 a 2007.

Amo Meu Trabalho- O sr. sempre teve a convicção de que seguiria a Neuropediatria?
Fernando Ramos– Não. Eu sempre quis a Medicina e era natural em mim o interesse pelas crianças com limitações neurológicas. Algo me atraía para o comportamental. Mas no início pensei em fazer especialização em Psiquiatria. Somente quando cheguei à especialização em Pediatria é que tive a sensação do encontro com minha vocação: queria estudar mais sobre a mente das crianças. E aí uni os dois e parti para a segunda especialização: Neuropediatria.

“NÃO é o FIM do caminho para aqueles que têm potencial de limitação”

O que foi mais desafiador para o sr. ao tratar de crianças com necessidades especiais?
No início, foi a falta da informação disponível no Maranhão. Precisei buscá-la fora do Estado. Minhas especializações em Pediatria e Neuropediatria foram realizadas no Rio de Janeiro. Nós não tínhamos nem como realizar exames complementares para o diagnóstico. Não havia tomógrafo, ressonância magnética, nada dos equipamentos de alta tecnologia que temos hoje para, ao menos, identificarmos a fisiologia do sistema nervoso central. Eu tinha que diagnosticar através do conhecimento clínico. Era difícil, mas posso dizer que o que mais me deixava, e deixa, mais abalado até hoje é com a tendência ao pensamento de menos valia que parte da sociedade tem em relação ao paciente portador de síndromes, por exemplo. Não é por aí. Eu sempre me preocupei com as famílias dos pacientes. Alguns casos de tumores cerebrais podem ser revertidos, mas o paciente precisa ser estimulado para além do tratamento com o médico. Mesmo para aqueles que têm potencial de limitação, como os portadores de síndromes, não é o fim do caminho. Para os pais, tem que ser o início do caminho. É a partir da participação dos pais que o tratamento pode ser melhor ou pior.

"Não vamos comparar nossas crianças com as outras,

mas com elas mesmas"

Como os familiares podem participar positivamente?
A família ajuda muito quando ela confia no médico e cumpre as recomendações, como as terapias ocupacionais, sessões de fonoaudiologia, além, é claro, do afeto dispensado à criança. Acompanhei casos de patologias raras, como a síndrome West, em que a criança nos primeiros meses de vida apresenta espasmos e tem comprometimento motor e mental, ou seja, anda e fala com dificuldade, mas que conseguiu chegar à fase adulta devido à perseverança dos pais no tratamento.

Na TV Mirante (Globo): sobre autismo

Conheço jovens com síndrome de down que tocam piano divinamente bem. Sim, existe potencial limitado nos portadores de síndromes, mas, por outro lado, eles têm ritmos fantásticos, com grande capacidade para o canto e dança. Ainda não sabemos por que isso acontece, mas é comprovado que eles têm essa facilidade para a música. Então, os pais ou responsáveis devem estimular essa facilidade deles. Os meninos podem fazer muitas coisas, despertar a afetividade nos outros, pois os portadores de síndromes de down são extremamente carinhosos. Não vamos comparar nossas crianças com as outras, mas com elas mesmas. Todos nós somos limitados. O problema é que não nos vemos assim. Se eu tiver de pintar como os exímios pintores, vou me sentir deficiente.

Com alunos do Programa de Atenção Social Sousândrade, na estreia do espetáculo “Buços” 2017

Seu interesse pelo teatro e dança tem a ver com essa observação da sensibilidade dos pacientes para a arte?
Sim, e foi natural. Eu tratava só de crianças, mas à proporção que elas cresciam eu tinha interesse de saber como estavam se desenvolvendo na adolescência. Não queria interromper o tratamento, e as famílias também manifestavam o interesse pelo acompanhamento. Foi então que fiz minha terceira especialização, em Hebiatria (ramo da medicina que trata das alterações típicas da adolescência), em São Paulo, final dos anos 80. No Hospital Universitário, onde eu atendia, criei o Núcleo de Atenção à Saúde da Adolescência, onde atuávamos com uma equipe multidisciplinar. Éramos médicos, psicólogos, enfermeiros e nutricionistas. Percebemos a aptidão deles para as artes. Eu via que eles tinham muito mais a extrair de si; que deveríamos explorar os pontos positivos deles. Foi quando criamos, no final dos anos 90, o grupo Colun Vox para ensinar teatro e Dança e que existe até hoje.

Explicando para a plateia o objetivo maior do projeto social “Jovens fazendo arte”

Em 2014 a Fundação Sousândrade passou a patrocinar este grupo para ensinar teatro e dança gratuitamente para a comunidade, pelo projeto “Jovens fazendo arte”. Hoje, ele faz parte do Programa de Atenção Social Sousândrade (PASS), de onde sou coordenador. No PASS, também oferecemos aulas de alfabetização, inglês, espanhol e vamos iniciar ainda este ano as aulas de Informática. A criança e o adolescente sempre são minha prioridade.

"Já recebemos meninos iniciados nas drogas, mas que abandonaram este caminho pela arte, pelo conhecimento"

Quais os benefícios que a arte provoca na mente da criança e do adolescente?
A arte tem um poder extraordinário. A criança e o adolescente precisam de espaços para desenvolver potenciais artísticos. Nem todos nasceram para futebol, muitos nasceram para artes plásticas, por exemplo. Mas precisam encontrar espaços para descobrirem seus talentos. Temos depoimentos de jovens que chegaram ao PASS com depressão, cabeça baixa, tímido, sem querer falar sobre sua vida, e que ao terminar o curso de Teatro e Dança estão transformados. Sentem-se percebidos pela sociedade. Imagine o que é para um jovem em condições de desigualdade social e que muitas vezes não é nem enxergado pelas pessoas, enfrentar o palco e ser aplaudido de pé? Isso é fantástico! É uma ressignificação de mais valia na mente dele. E isso acontece mesmo, pois a cada encerramento do curso, os alunos preparam um espetáculo para apresentarem para o púbico em geral. É um momento lindo, pois o jovem pode ser visto de outra forma pela família, pelos amigos. Sem falar no problema social relacionado às drogas. Já recebemos meninos iniciados nas drogas, mas que abandonaram este caminho pela arte, pelo conhecimento, pelo acolhimento que damos no PASS. Eu acredito neste trabalho.

"Quando escolhi a Medicina eu tinha um objetivo bem definido, o de trabalhar para quem tem menos direitos garantidos. É meu PROPÓSITO maior na vida"

O que move o sr., que já está aposentado, a continuar trabalhando?
Quando escolhi a Medicina eu tinha um objetivo bem definido que era o de trabalhar para quem tem menos direitos garantidos. Esse é meu propósito maior na vida. Então, não quero parar, pois essa vontade continua em mim e é o que me faz levantar todos os dias. Divido meu tempo entre o trabalho voluntário no PASS e com o atendimento semanal como médico em Chapadinha (245 km de São Luís). Atendo pacientes com epilepsia, a maioria muito carente financeiramente. Sei que estou no caminho certo porque até hoje vibro quando acompanho a evolução de um paciente que recebeu determinado diagnóstico negativo e que nas consultas seguintes constato a evolução. Comemoro todos os avanços, nem que sejam pequenos. É isso que oriento os familiares a fazerem. Vamos comemorar a aprendizagem na escola, a emissão de um novo som, um movimento a mais, qualquer avanço é grande demais para eles.

No trabalho voluntário, complemento minha realização profissional e pessoal, pois não tenho filhos biológicos, mas considero todos os alunos meus verdadeiros filhos. Nada é comparável ao abraço que recebo deles quando chego ao Espaço Cidadão, onde funcionam os cursos. Eles correm para me contar as novidades e para conferirem se levei chocolates, bombons, pois eu sempre levo para eles (risos). Essas são as minhas grandes alegrias na vida.