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Adoro conversar por horas e horas com pessoas que bancam seus sonhos, mas naquela viagem eu não queria conversar sobre nada. Fui para um lugar mágico, e tudo o que eu queria era continuar no silêncio. Só falava o necessário com as pessoas, tipo: “Onde tem um self-service por aqui?”. Não queria dar entrada para papo, nem ter que me lembrar onde eu morava, com o que eu trabalhava, se era casada, se tinha filhos, enfim, não queria me situar no meu mundo real. Fui para aquele lugar para me desconectar. E parei no self-service que me sugeriram…
As mesas, rústicas, eram comunitárias, compridas, estilo Santa Ceia. Os bancos não tinham encostos. Talvez o dono quisesse forçar o povo a comer rápido e sair fora. Eu já gostei. Para evitar vizinhos conversadores, escolhi um canto para sentar. Fiquei ali, feliz da vida, entre a alface e as fotos que eu acabara de imprimir. Sou do tempo de fotos reveladas. Hoje, impressas. Gosto de espalhá-las pelas paredes da casa para fazer com que num dia qualquer de rotina venham à memória momentos de uma viagem especial. E gosto de almoçar, em férias, vendo as fotos que fiz pela manhã. Mas tem gente que prefere conversar. E mesmo com tantas opções humanas e falantes no restaurante, tem gente que não percebe quem está mudo e quer continuar calado. O meu ritual foi interrompido por uma mulher de cerca de 50 anos, cabelos curtinhos e pretos, pele branquíssima com jeito de quem usa creme antirugas desde os 15. Ela sentou-se à minha frente. E eu, atrás dos meus óculos escuros, respondi ao cumprimento dela sem soltar uma letrinha sequer. Apenas o balançar de cabeça. Continuei vendo as fotos, na esperança de ela me achar mal-educada, chata, ignorar-me totalmente. Mas eis que ela lançou a seguinte frase fatídica:
– Você é de onde?
(Não acredito nisso, pensei…Vou ser obrigada a falar de mim para essa mulher?)
– De São Luís, Maranhão.
(E só. Não emendei: Cidade Patrimônio Cultural da Humanidade, Cidade dos Azulejos, única capital brasileira que não nasceu lusitana, enfim, nada do que os maranhenses orgulham-se. Mas a mulher queria conversar…)
– Tá viajando sozinha?
(Argh! Agora vai querer saber toda minha árvore genealógica. Fala sério! E eu, lerda, poderia não ter respondido com uma pergunta…)
– Tô… E você?
(Pergunta mais besta essa…Não tenho a menor vontade de saber se ela viajou sozinha ou num grupo de excursão. Agora vai-se danar a falar…)
– Eu viajo periodicamente sozinha para lugares distantes, como este, para contar histórias para crianças que não tem acesso à leitura.
(Caracas! Que trabalho massa é este?, pensei em voz alta…E fez-se o eco…)
– Caracas! Que trabalho massa é este?
– É maravilhoso mesmo. Estou nele há um ano. Sou pedagoga e durante 20 anos trabalhei em colégio. Fui professora e coordenadora pedagógica, tinha um ótimo salário e segurança, mas não estava mais me sentindo feliz. Há um ano, tomei coragem e conversei com meu marido e minha filha de 21 anos. Falei para eles que pediria demissão, pois precisava encontrar um trabalho que me desse mais alegria.
(Esqueci alface, fotos, e já estava fascinada com a história da mulher, que continuava…)
– Meu marido me deu todo apoio. Disse que eu deveria fazer o que meu coração mandasse.
– E como você chegou a este trabalho?
– Bom, eu pedi demissão, contra a vontade da diretora. Afinal, já tinha 20 anos no mesmo colégio. Fui contra a opinião de parte da minha família e dos amigos, preocupados com minha situação financeira, pois eu não tinha outro emprego à vista. Mas eu estava decidida a cuidar mais de mim. A começar pela minha forma física. Eu não fazia exercícios há muito tempo. Então, passei a andar todos os dias pela manhã. E foi a partir daí que minha vida tomou outra direção…
– Conta tudooooo!, implorei, já debruçada sobre a mesa.
– Um dia, voltando da caminhada, reparei que tinha uma editora de livros pequena, próxima à minha casa. No outro dia, entrei lá, de moletton e tênis, e deixei meu currículo.
– De moletton e tênis, tentando uma vaga de emprego?, perguntei espantada. E suada?
– Exatamente. Suada e desarrumada. Nunca pensei que o diretor da editora estivesse na sala. Fiquei sem jeito, mas já estava lá e entreguei o currículo. Ele me perguntou de quem eram aquelas informações, e eu respondi que eram minhas; que eu morava ali perto e caminhava todos os dias pelos arredores. Ele prometeu avaliar, como todos fazem, e eu fui embora sem muita esperança.
(Logo agora a mulher inventa de interromper a conversa para pedir uma coca zero)
– Continua!, implorei novamente.
– Pois, você acredita que em menos de um mês a editora me ligou dizendo que queriam conversar comigo?
– Que sorte!
– Foi muita sorte mesmo! Eu fui conversar com o tal diretor, e sabe o que ele disse? Que chamou muito a atenção dele o fato de eu fazer caminhadas e de estar tentando outra oportunidade profissional aos 50 anos de idade! E me fez a proposta dos meus sonhos: para eu apresentar os livros infantis nas escolas aonde as grandes editoras não tinham interesse comercial de ir. Imaginei que teria problemas em conciliar essa nova vida com minha família, mas levei a proposta para casa.
– E sua família, o que disse?
– Eles estranharam um pouco no início. Mas fiquei muito impressionada com a reação do meu marido. Ele disse que fazia tempo que não me via tão feliz e que me apoiaria no que eu decidisse. Minha filha disse que já estava bem grandinha para ficar sem mãe por alguns dias e que eu deveria seguir sem medo.
– Que família você tem, hein!
– É verdade. Sem o apoio deles teria sido mais difícil, mas acredito que eles sentiram tanta segurança de que eu queria mesmo mudar minha vida profissional, que sabiam que nada do que falassem mudaria minha decisão. Agora, tenho de ir. Tenho outra escola para visitar à tarde, e eu ainda quero conhecer mais Noronha antes de voltar a São Paulo.
– Ah…Vai agora não…Adorei conhecer sua história…Conta mais um pouco…
Ela riu e disse: ¬- E nem deu tempo de você contar a sua. Mas espero que você encontre o seu caminho, como eu encontrei o meu. Tchau!

Que mulher é essa, gente? Fiquei impressionada com a coragem dela, a convicção do que achava certo, a serenidade, a simplicidade. Não contou vantagem. Falou de sua vida de uma forma tão simples, que eu voltei caminhando pela cidade cheia de planos para mudar coisas aqui e ali da minha.
Esses encontros não são por acaso. Você não esbarra, por nada, numa pessoa que saiu, sabe Deus de onde, conta para você uma experiência fantástica e vai embora. Isso eu aprendi. Eu viajei justamente para organizar minha vida profissional e aquela mulher vem sutilmente me dizer que devemos fazer o que o coração mandar? Foi ou não foi um recado do meu anjo da guarda? Voltei para a pousada, deitei numa rede e deixei meus pensamentos seguirem livres e projetarem a vida que eu queria ter…Aquela simples história de almoço me ajudou a reeditar toda minha carreira. E pensar que eu nem queria falar com ela…E pensar que a viagem aconteceu por acaso, de última hora… Tive a certeza de que para romper com os sonhos que sonharam para mim ou que eu sonhei para os outros, eu teria de parar de apenas pensar. Foi então que eu agi. Silenciosamente.