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Certa vez, fui fazer os registros de um projeto numa escola para a qual eu prestava Assessoria de Imprensa. O público-alvo eram alunos do último ano do Ensino Médio e que precisavam escolher um curso para prestarem vestibular. Foram convidados quinze profissionais de São Luís (MA), ex-alunos do colégio, renomados na vida profissional. As perguntas iniciais dos alunos, que tinham em média 16 anos de idade, eram sempre as mesmas: o que faziam, como faziam e, claro, a pergunta do pote de ouro: quanto ganhavam.

Naquela edição do projeto, tive o prazer de conhecer a história de dois profissionais admiráveis. A primeira foi uma médica. Depois de ter feito doutorado na Universidade de São Paulo e seguido para a Alemanha, ela voltou ao Brasil com emprego garantido no Ministério da Saúde. Ficou por algum tempo em Brasília, mas preferiu trocar o Ministério pelas salas de aula da Universidade Federal do Maranhão. Como assim?, quiseram saber os alunos, imaginando o disparate entre os dois salários. Quanto mais ela explicava, mais o semblante dos meninos mostrava surpresa. É que ela conseguiu o Ministério com tanto esforço que parecia um retrocesso. A tese do Doutorado passou por uma banca criteriosa e ela dedicou muito tempo de sua vida estudando. Por que vai abrir mão de tudo para dar aulas? Ela foi criticada na família e talvez nem tenha o carro com a mais alta tecnologia, mas se você visse como ela falava da profissão, pensaria em tudo menos num air-bag. “Não estudei para ter o conhecimento só para mim. Sou mais feliz dividindo o que sei com os outros, e não há nenhum lugar melhor para isso do que numa sala de aula”, justificou, detalhando as perdas salariais além da queda no status.

Outro profissional que me surpreendeu foi um fisioterapeuta. Era um rapaz de classe média que tinha tudo para ser mais um entre tantos que querem ter um emprego e nada mais. O que mais me chamou a atenção nele foi a sinceridade. Contou aos alunos que fez vários vestibulares por não saber o que queria. Eureka! Mais um igual a mim, pensei. Com sua licença, farei uma pausa na história dos dois para contar que desconfio ter sido eu a descobrir que existia vestibular para Ciências Imobiliárias. Em 1987, aos 17 anos, eu nem imaginava o que eu seria com um curso desses, mas o que eu gostei de saber foi que a concorrência estava dois por vaga. Fiz as provas com a certeza que eliminaria fácil meu único concorrente. Não eliminei. Logo concluí que deveria continuar vendendo roupas na casa das amigas, que era como eu me virava naquela época, já que nunca recebi mesada na vida. Mas o problema é que eu queria um diploma. Queria mostrar para meus pais que havia valido a pena o esforço deles de pagar escola particular a vida toda. Os fins justificavam os cursos! Além das Ciências Imobiliárias, fiz vestibular para Engenharia, Administração e Educação Física. E só caí na realidade quando… caí, na realidade.

Quando fiz vestibular para Educação Física, o vestibulando tinha de fazer provas práticas antes das teóricas. A primeira que me deram foi correr onze vezes em volta de um campo de futebol. Na época, eu fazia duas horas de ginástica aeróbica tranquilamente e, portanto, achava que tinha resistência para dar até 22 voltas naquele “campinho” de futebol. Assim, tal como Forrest Gump (foto), disparei a correr sem olhar para trás. Passei à frente de todos. O meu ego de Garfield me dizia que eu era o máximo! Lá pela oitava volta, as minhas pernas não obedeciam mais ao meu ego felino. Fui perdendo a força e o ar. Minha boca ficou seca e as pernas falhavam.  Eu parecia aquela atleta suíça das Olimpíadas de Los Angeles, de 84, que chegou em último lugar mas não desistiu. A diferença é que para a Gabrielle Andersen foi até marketing positivo de superação. Olimpíadas, transmissão pela Globo, fama e tal. Tanto que eu nem sei quem foi a vencedora daquela maratona, mas dela não esqueci. No meu caso, foi bem diferente. Metade das pessoas ria e a outra metade tinha pena. Mas todos gritavam: “Não pára, não pára!”. Mas eu e meu mundo caímos. Morri de vergonha. Aquilo foi de fato uma prova- ação. Só não sabia ainda o que tinha que aprender com ela.

Já o fisioterapeuta deu mais sorte. Parou antes de se maltratar. Ele contou aos alunos que o pai dele, que é engenheiro, ao vê-lo tentar, sem sucesso, dois vestibulares para Engenharia Civil pediu para conversar. “Filho, você quer um diploma para você ou para mim? Se for para mim, eu já tenho o meu. Não preciso do seu”. E deu o golpe de mestre: “Descubra o que você quer fazer e faça”. E foi assim que este rapaz libertou-se da Engenharia para fazer o próprio caminho na Fisioterapia. A paixão pela escolha era tanta, que ainda no curso ele começou a dar aulas. Sua rotina diária era das 7h às 22h, com intervalo de apenas uma hora para o almoço. Tudo a pé ou de ônibus. Ali, falando aos alunos, ele já estava formado e com reputação na área. Já tinha apartamento, carro, mas disse, rindo, que a rotina está ainda mais puxada, pois entraram os plantões aos domingos. E embora não precisasse de salário extra, optou por também dar aulas à noite. Com os dias tão comprometidos, poderia ter recusado conversar com os alunos naquele sábado de folga, mas preferiu compartilhar sua experiência com os adolescentes e, certamente, fez muito deles pensarem no peso de uma decisão baseada numa causa equivocada.

Em mim, ele despertou a reflexão do quanto demorei para descobrir que queria ser jornalista. Pensei em como foi tranquilo passar no vestibular, assim que enxerguei meu caminho e dediquei esforços para segui-lo. Lembrei da correria entre trabalho e universidade, dos ônibus cheios, plantões de fins de semana, almoço vez em quando… Pensei o quanto lutei para ter uma empresa do jeito que eu queria, de quanta leitura precisei, quanto estudo e quantas desavenças precisei superar. Pensei nas quedas que levei e entendi que aquela queda da corrida foi a que menos doeu, pois foi uma queda de um lugar que não era o meu. Eu nunca quis ser professora de Educação Física. Foi só uma rasteira de Deus para que eu me recolocasse no meu lugar. Talvez por isso esses dois profissionais não tenham sentido quase nada quando abriraram mão do que não lhes pertencia. Dói mais cair de um lugar que você tinha certeza que era seu.  Mas é uma dor digna. A dor da desconstrução. Esfacela-se o sonho que foi sonhado com tanta certeza em determinada época da vida e constrói-se outra base para um novo sonho real. Acredito que só entre verdades, quedas e triunfos conseguimos ter o maior dos respeitos, o nosso por nós mesmos.